Talvez já tenha se passado muito tempo desde os acontecimentos trágicos. Talvez um mês ou um ano. Realmente eu não saberia dizer. Sei apenas que o cair do dia faz-me paulatinamente desligar-me da realidade tangível e flanar pela letárgica torrente da imaginação. De repente a luz começa a se perder no horizonte. Lenta calmaria invade minha mente e uma irresistível sensação inebria os meus sentidos.
A partir disso passo a habitar outra realidade. Já não sou mais senhora do agora. Encontro-me em certa incapacidade de mensurar passado, presente, futuro. Talvez eu esteja habitando o inabitável. Estou explorando virgens pastos. Talvez, agora, eu habite o magnífico espaço do improvável.
Então começo a sentir por perto a imensurável sensação de transcendentalidade. Não passo a flanar por algum mundo espiritual, contudo. Somente sinto o meu corpo entorpecido. Passei a dançar em meio a ondas mecânicas. Ondas de leve batida melancólica e confortante. Quando percebo, estou dançando em sua dor. Estou tragando o doce horror contido em sua voz. Ouço infinitas vezes as mesmas palavras, os mesmos acordes, a mesma história. Porém, cada segundo é uma experiência única. Desesperadamente trago-a. Tento gravá-la em qualquer rascunho desesperado, mas, no instante em que planejei eternizá-la, tua voz retumbou distante. Cada vez mais distante e distante. Até o calar final.
Desesperei-me. Procurei-a em todos os cantos e nada encontrei. Queria falar mais um pouco contigo, talvez convidá-la para tomar um café. Ou fumar uns cigarros. Ou caminhar na chuva. Ou qualquer outra coisa que me fizesse permanecer mais alguns instantes perto de tua dor. Compreendestes?
Não houve nenhuma resposta.
E por fim percebi que o disco da vitrola girava calado. O disco já havia chegado ao fim.
De forma que eu poderia encontrá-la. Infinitas vezes. Apenas precisaria ligar a vitrola, desligar-me da realidade concreta e flanar pelos tangos mentais.
Ao abdicar do eu e dedicar-me a entender o insólito horror do seu lamento, acabei por descobrir muito sobre eu mesma.
Depois uma fina chuva caiu e encheu a terra de amabilidade
Os sinos badalaram
E finalmente o crepúsculo deu lugar a noite
E ao navegar pela sua dor, acabei navegando por minha dor.