terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Feliz ano velho - algumas palavras

Flanei pela madrugada e cantei a melodia do vento
Soltei os cabelos e ri meu riso libertadoramente
abracei fortemente aqueles que eu tinha vontade
Disse não-ditos, disse o que pensava, assumi
que não sabia e, por hora, não saberia responder
Senti a deliciosa leveza do nem saber, nem ser, nem querer
Aproveitei a beleza de mais uma felicidade fugaz.

Depois veio o surpreendente,
Diálogos e confissões tecidas pela madrugada
De repente, percebo:
alguém notou a sua confusão
alguém reparou os passos distraídos
alguém percebeu a dor por trás do sorriso
a dor por trás do olhar de esgueira
a dor do tanto sentir
medo da solidão
medo do amor
medo da dor
medo de jogar tudo para o alto
medo de assumir os erros
medo de tentar novamente
medo medo medo medo medo
medo de sentir medo

Alguém reparou enquanto caminhava distraída.
Embalada em seus braços, tapei os olhos com as mãos, me contorci e sussurrei:
- Não vê? Sou egoísta. Egoísta. Egoísta. Infinitamente egoísta.
Percebeu quantos "eu" carregados em meus lamentos?
Segui o terço e ouvi suas palavras.
Era bastante incomum a forma como conseguia enxergar meus defeitos
E sutilmente descrevê-los um a um.
Porém, não fiquei colérica ou melancólica
Constatava a fatalidade de cada observação.
Fazia um breve comentário e me ajeitava em seu colo.

E assim passamos longas horas
Embrigada de sono, experimentei a lucidez de contemplar depois de tanto tempo a tragicidade de todas aquelas palavras.
Às vezes eu sorria e ele estranhou.
Seguiu o terço e eu o ouvia.
O abraço ficava vez mais acalentador
Cada vez sentia a sua respiração quente mais próxima ao meu rosto

Pouco antes da aurora, ele desligou a luz e cansou-se de tanto falar tanto.
Ficamos em silêncio
Entreguei-me ao momento e concomitantemente estranhei o fato de estar ali.
A onda voluptuosa chegou e fui deixando-me levar pelos sentidos lentamente.
Estranho se sentir em paz ao lado de quem, sem permissão, desnudou seu ser.

Certo tempo passado, quando o sol já ardia lá fora, me despedi.
Subi tonta e resoluta a ladeira da Avenida movimentada.
Remexi um tanto confusa na bolsa e me lembrei que amanhã seria Ano Novo.
Ano Novo e velhos problemas
velhos medos
velhas soluções
velhas condutas
"Ah, que porcaria. Pra quê beber champanhe e me vestir de branco?
Se dia primeiro farei tudo exatamente igual? Danem-se as listas de desejos (que não desejo) tediosamente iguais:
- Próximo ano vou malhar, estudar suficientemente, arrumarei um namorado, farei plástica nos seios, aprenderei alemão, etc, etc.
Dane-se!
Desejo uma feliz conduta nova. Um velhíssimo novo modo de contemplar a mesma paisagem cinza cotidiana. Força para continuar enfrentando a histeria e os fatos lúgubres. Coragem para refazer-se quantas vezes forem necessárias. Ousar voltar atrás e lutar contra as misérias. Deixar o egoísmo de lado e passar a perceber a vastidão do mundo que existe lá fora. E quantos mundos além existem e coexistem com o seu. Uns malucos queridos disseram que o tudo e o nada são iguais. Pois bem, desejo tudo e desejo nada.


quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Monsieur, s'il vous plaît


Monsieur, contemplastes a tempestade que desabou do céu, hoje?
São Pedro resolveu chorar todas as suas dores de uma vez só.
Arrependeu-se de todos os seus pecados.
Talvez tenha simplesmente  tomado consciência deles.
E tal embaraçosa situação o condenou, o libertou, e justificou o pranto.

Angustiada, engaiolada, limitada.
Sufocada no meio de tanta histeria, tanta tragédia, tantas lágrimas.
Pessoa já disse "tanto aspirei, tanto sonhei, que tanto.
De tantos tantos não me fez nada em mim"
Bastante caos e pouca solução.
Não suporto mais as minhas lágrimas solitárias, nem meu peito fustigado que vive arfando, buscando libertar-se do cárcere.

Porém, permaneço inerte, leprosa, delirante.
Os dias passam e tudo permanece da mesma forma
Monsieur, socorro, não tenho a garra de outrora.
Ando me escondendo pelos cantos, fugindo de tudo, todos.
Fugindo do meu eu.
Negligenciando o itinerário, que resignada enganei-me que havia aceitado.
No fundo, bem lá no fundo, há muita angústia, muito rancor.
Excesso de sentimentos porcaria que me levam a cultivar pensamentos criminosos.

E ficar aqui ao lado, ouvindo os soluços abafados de Maria, no quarto ao lado, durante a madrugada.
Sem nada poder fazer. E constantemente sentir na boca o gosto-fel da inutilidade,
depois de muito e sempre e tanto.
É de enlouquecer qualquer um.

Fui à esquina e comprei um maço de futuros problemas e urgentes soluções.
Em cada trago ia paulatinamente relaxando,
a nicotina entorpecia o meu ser e pelo menos momentaneamente,
toda a angústia sublimou no ar.

De repente, Monsieur apareceu.
Vinha de longe, trazia os cabelos molhados, bagunçados.
A roupa desalinhada e um semblante preocupado.
Fitou-me severamente e tenramente por debaixo dos aros Woodstock.
Abriu os braços largos e desajeitados e irresistivelmente aconchegantes.
Me desfiz em segundos, larguei os cigarros, corri para o abraço.


Monsieur, quanta bobagem, fiquei até envergonhada de compartilhar as minhas mais íntimas de perturbadoras angústias. Porém, estais tão próximo, ando irremediavelmente solitária, gosto tanto de tua companhia. Além de tudo vem acompanhando de perto o precipício em que estou prestes a me lançar.
Sinto-me tão egoísta relatando as minhas loucuras, a questão é que ando tão sozinha, carinhos assim comovem profundamente a minha alma, sim, Monsieur, se pudesse ficaria mais tempo ao teu lado; tenho certeza que estaria menos melancólica embora os meus problemas continuassem a existir. Fitaria longamente o teu envolvente e cálido olhar. E repetiria o seu doce sorriso longamente em minha memória. É, está tarde. Estou com sono. A cama está quente e irresistível. Acho que chegou de partir. Como consegue gostar de mim se nem eu gosto? Ah, Monsieur, não faças assim. Não digas isso - sorrisos tristes, mas ainda sorrisos, entrecortados- Deve ter sido o meu primeiro sorriso do dia. Tudo bem, vá, Noite serena. Tentarei ficar bem, claro. Deixe a luz do corredor acessa.

E no fundo, por fim, ficaram algumas urgências: "Fique, por favor, fique" que retumbou surdo no silêncio da madrugada.

Tiro incisivo

Tiro incisivo, disparo histérico de 38, arrebatou o meu delirante compasso. A força do alojamento da bala em meu corpo me empurrou para fora. Aos poucos ia perdendo as forças aos poucos ia perdendo sangue aos poucos os pensamentos confundiam-se aos poucos a dor tornava-se tão forte todos os meus órgãos doíam e agoniava de dor e angústia e solidão. Som lúgubre e enfadonho invadia os meus ouvidos. Não havia para onde correr, não conseguia me mover. Não conseguia gritar suficientemente alto, só soltava alguns gemidos esparsos de dor. Estava absolutamente sozinho. Desolado, sujo, todo o porvir sublimava-se.
Reminiscências brincavam em minha memória e já nem me lembrava se tinha 7 ou 70 anos. Pouco importava, aliás. Se era uma criança ou um velho, pouco importava. Pois me encontrava no fim, desesperançado, frágil, desconsolado. Aos poucos fui perdendo a capacidade de mensurar o lapso de tempo em que meu corpo jazia naquele chão frio. A luz do sol invadia irresistivelmente o quarto e dourava o meu semblante lânguido. Amanhecia, eu entardecia. Meus olhos ardiam, aos poucos padecia. Não sabia se conseguiria resistir. Minhas pálpebras foram se fechando.
E em meus últimos momentos, percebi que o fim é insuportavelmente igual ao começo.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Re-Escrevendo

Não estou distante

Só não me encontro próxima

Afastada do meu próprio ser

Tentando me afastar 

de tudo aquilo que não quero me tornar

Tentando me re-escrever

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Embriaguez

“Para que haja arte, para que haja alguma ação e contemplação estéticas, torna-se indispensável uma condição fisiológica prévia: a embriaguez. A embriaguez tem de intensificar primeiro a excitabilidade da máquina inteira: antes disto não acontece arte alguma. Todos os tipos de embriaguez, por muito diferentes que sejam os seus condicionamentos, têm a força de conseguir isto: sobretudo a embriaguez da excitação sexual, que é a forma mais antiga e originária de embriaguez. Também a embriaguez que se segue a todos os grandes apetites, a todos os afetos fortes; a embriaguez da festa, da rivalidade, do feito temerário, da vitória, de todo o movimento extremo; a embriaguez da crueldade; a embriaguez da destruição; a embriaguez resultante de certos influxos meteorológicos, por exemplo a embriaguez primaveril; ou a devida ao influxo dos narcóticos; por fim, a embriaguez da vontade, a embriaguez de uma vontade sobrecarregada e dilatada. — O essencial na embriaguez é o sentimento de plenitude e de intensificação das forças..."Friedrich Nietzsche, in "Crepúsculo dos Ídolos"

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Pequena




Pequena explosão delirante.
Ataques súbitos e ausências deliberadas
Minha pequena,
não fuja assim de mim

Sua lembrança sequestra constantemente os meus pensamentos
Necessidade vital para os meus sentidos é inebriar-me nos seus
Minha vida sai a trote delirante quando não tenho os meus passos alinhados aos seus.
Luz do meu viver encontra-se em seu amável olhar
Pele mais macia não há
Perfume instigante, mas maior delírio encontro na ausência do seu olhar, pra me acalmar
Olhar que acalma os males do mundo. Pequena, os planos futuros só farão sentido
se você permanecer ao meu lado. Amanheço e adormeço ao seu lado.
Por isso, não chore, não fuja.

Pequena explosão delirante, esta paixão é embriagante
Qualquer tolo sujeito que tente adentrar o nosso mundo, fustiga o meu peito
Angustia a minha mente preocupada. Você é minha
Minha e só minha.
Pequena, se a sua mão permanecer delicadamente entrelaçada na minha,
poderemos ir juntas a qualquer lugar
medo não existirá
venceremos qualquer estúpido preconceito
maior amor não há

Por isso, minha pequena, minha linda, minha amada, minha princesa (...)
Sensível mulher. Invencível beligerante. Voluptuosa amante,
não fuja de mim, não esqueça jamais
Venha cá,
Me abrace e sinta meu calor
Me envolva em seus braços
Ouça a batida
daquele que bate pelo avesso,
mas que bate por você.

Ps: Amor é amor. Se ama a pessoa, não o gênero. Um apelo para um mundo sem preconceitos.

Para as Princesas Mândala e Bruna.




sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Envelheço



Fito. Sigo. Avalio
O reflexo deste lânguido espectro na pia do banheiro
Não me reconheço

Acabei me tornando 
igualmente
como
Envelheço
Ironizo os sonhos outrora sonhados
Abandonei a parte bonita em qualquer rua sem saída 

A parte colorida desapareceu
Chamem a polícia!
alguma coisa morreu
lentamente
desvaneceu
Morreu

Chaga leprosa
mar escarlate
Cega a visão
imobiliza os
sentidos

Coração a prova de balas
Fugindo de qualquer envolvimento
Não consegue se comover como antes
Agora se entrega em qualquer alienação
Acredita em qualquer discurso fajuto
Muda de itinerário em segundos

Vive por viver
Verdade dissimulada
Nem sei o que sinto
o que deveria sentir
Quase acredito na alegria
realidade fajuta

Veja só
Estou me envenenando gratuitamente
nem me lembro de olhar pro céu
Rocha fixou meus pés no chão
Não consigo mais voar
Não há ninguém para me salvar

Sonhos, Sonhos, Sonhos
Realidade
Envelheço
Ironizo
Distancio
Confortavelmente distante 
Sigo o caminho errante
Fito. Sinto. Omito


sábado, 21 de setembro de 2013

A parte mais triste


A parte mais triste, certamente, são os projetos que sublimam no ar. Pois a presença é como a ausência. Da mesma forma que nos acostumamos com a presença, nos acostumamos com a ausência. Até porque há muita presença ausente. E muita ausência presente. Silêncios sábios, urgentes, que dizem o necessário. Basta apenas um pouco de sensibilidade para poder captar todos os gritos desesperados contidos no vácuo. Porém, cuidado, o terreno é íngreme.
O problema, ao meu ver, está nos planos planejados, sonhados, idealizados. O tempo passa. Você se acostuma. De repente, o vento que refresca a tarde primaveril traz reminiscências febris. É aquele momento em que pequeníssimos detalhes tornam-se grandes. Que em segundos você revive tudo. Palavras, gestos, planos, planos, planos. Que nunca serão realizados. Ignoramos, sorrimos, sufocamos a saudade. Sufocamos o desejo de que os projetos tivessem dado certo. Que o nós tivesse. Contudo, agora, cabe apenas o eu. O tu se foi. Seguimos.
Vou andando. Procurando meu caminho. Atrapalhada como sempre estive. Sendo gauche como Drummond. O curioso é que continuo, de forma ou outra, te encontrando por aqui, de vez em quando. Talvez, simplesmente, a sensação tenha origem nas saudades. Pode ser. Essa incômoda inquilina amolece qualquer coração e faz rebuliço até nas mais sensatas mentes. Fato é que, verdadeira ou criada, essa presença de alma proporciona uma sensação agradável.
O problema está quando, em momentos de distração, as lembranças dos planos planejados, sonhados, idealizados, voltam. Ao reviver tudo, analisar o passado, o presente, a fatal impossibilidade...Aaaaah. Vem uma tristeza. Doce. Mas até tristeza doce é triste. Vem uma certa angústia resignada. Uns sentimentos antagônicos, bizarros. Dá vontade de repassar mentalmente todos os motivos que te levam a crer na leviandade dos planos. Dá vontade de reviver todos os momentos e lembrar de tudo aquilo que você sentiu e que a fez planejar desmedidamente...Aaaah. Em qual canto assombrado aquela sensação de invencibilidade foi parar? A covardia do hoje envergonha-se diante da destemidez do passado. Nada poderia nos deter.
Tudo questão de paciência. O tempo irá nos levar. O tempo irá levar os planos. E de vez em quando
Bem de vez em quando. Em momentos de distração. Eu vou lembrar.

Imagem: Edward Hopper

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Ultrarromantismo alucinante



Corpo, então, cede
Desprende-se
do cárcere material
Flutuo por mundos do inconsciente
Torrente letárgica
Caleidoscópios, ilustrações psicodélicas
vertiginosamente me alucinam

Quando acordo
minha pele sente frio
procura desesperadamente
por abrigo
procuro o calor
do teu corpo
gravado em mim
deixado
antes de partir

Sonhei
era tão real
tão fidedigno que juro, juro, juro:
que estiveste aqui
que pude tocá-lo novamente

Beijos tácitos
lábios procuram sedentos
pelos deliciosos teus
Perfume embriagante
inebria ainda
os meus tolos sentidos

Abro os olhos, estou sozinha
Contemplo escuridão
Angústia, desatino a reviver 
Anseio pelo o que nunca foi.

Tive um pesadelo
pois quando acordei
tive medo
de jamais voltar
tive medo
de jamais reencontrar.

Trágicas três horas da manhã
Rua deserta
Quarto deserto
Peito desatina:
desleais lembranças

Por fim, agarrei o travesseiro
Revivi os teus sorrisos
Adormeci
E, por instantes, acreditei
que a aurora
o traria de volta

Lua cheia

Lua cheia
Alma cheia
disse o poeta

Lua solitária
Lua não é de ninguém
para poder ser de todos
iluminar o desvalido mundo
com tua singela magnificência

Lua, companheira
Sou solitária como tu
Queria libertá-la
Queria me libertar
Anos passam
Ciclos iniciam
findam
iniciam
Vertigem!
Infinitos
espasmos

Lua permanece
Lua nova
Lua crescente
Lua cheia
Lua minguante
Lua nova
Fases da lua
Fases da vida

Lua guia os meus passos
pela penumbra da madrugada
Fria brisa acaricia a minha pele
Trago o silêncio
Trago a paz
que a Lua me traz
Estou enamorada
quero me embriagar
em teus mistérios

Lua misteriosa
Inesgotável fonte de magia
Mãe do universo
dos amantes
dos solitários
dos leprosos
dos pródigos
dos mendigos
dos insensatos
abençoa a todos
com teu encanto

Hoje é sexta-feira
Lua cheia
Alma cheia
Deixa o nefasto passado findar
Deixa a alegria entrar
Deixa a aflição sair
Deixa o outro ciclo se iniciar

E se o delírio do mundo o fustigar
Chame a sua fiel companheira
esplêndida e singela
Lua




terça-feira, 17 de setembro de 2013

Náuseas

Saiu antes do horário, pegou a mochila e discretamente fechou a porta. Desceu as escadas resoluta. Andou com convicção. Quase corria. Ela insistia. Retirando forças de qualquer lugar interior. Observando os dias se arrastarem e quase nada se alterar. 
Depois que apanhou a condução, ela questionava: E, agora, como é que vou ajeitar todos estes desajeitados? Não sabia por onde começar. Não tinha ninguém para ajudá-la. Sempre tivera consciência das desordens. Antes, deixava de fazer. Ia postergando. Concentrando os seus esforços em distrações. Não mais. Agora, a falta do agir a sufocava. A inércia do presente sugava suas energias. As impossibilidades, também. Questionava-se até onde tinha ido parar o seus pensamentos positivos. Sei não. Envelhecia na cidade. Entristecia na cidade. Queria uma passagem só de ida. Queria conhecer o mundo e fugir da letargia. Fugir. Era a sua especialização. Não mais. Ela agora queria enfrentar as desordens: Só saio daqui depois de ajeitar tudo. Quanto tempo levaria? Ela não sabia. Ninguém sabia. Porém, ela, insistia.

Limpa água leve

Água, Vem, Limpa, Leve.
Água, Vá, Traga, Lave.
Purifique os corações mutilados
Limpe-os, Renove as esperanças
Recarregue as forças
Para que continue enfrentando
as melancolias delirantes
Vem, Água, Refresca
Permaneça, Água
Limpa, Leve, Lave, Traga
Vem, Água, Cure
Vá, Água, Leve
Chore
Chuva

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

O Tempo e o vento

Abandonamos algumas alegrias.
Abandonamos algumas tristezas.
Abandonamos algumas ou todas as pessoas.
Deixamos de lado a reciprocidade e o respeito.
Esquecemos-nos das boas lembranças e das más também.
Deixamos que o tênis fique sujo e nos esquecemos de limpá-lo.
Deixamos que a casa prolifere poeira e nos esquecemos de limpá-la.
Abandonamos nossas maneiras e meias antigas.
Deixamos pra depois o abraço.
Esquecemos do bom dia.
E então, deixamos pra depois nós mesmos.

Tempo.

Teeeeeeeemmmmpo.

Teeeeeemmmmmmmmppoooooo.

O tem-po pas-sa len-tam-ent-e.
E é bem possível que ainda continue se esquecendo de arrumar a cama.
De limpar os olhos.
De dar bom dia.
De abrir as cortinas.
De tirar a poeira e retornar as boas maneiras.
De lembrar de si mesmo.
Então, o tempo...

Teeeeeeeemmmmpoooo.

Temmpoo.

Tempo.

O vento entra pela cortina agora aberta,
Inunda a casa.
Devasta o coração.
Ouve-se os estilhaços das janelas.
As louças dependuradas caem.
As canecas desabam.
As roupas se misturam.
Escovas, pentes, cremes dançam incontrolavelmente
Junto aos sopros do vento.
E o vento sorri.
Sorri audaciosamente pro tempo e diz:
Você não é de nada, passa, passa, passa e nada faz.
Nada modifica.

O vento dança no meio da sala.
Entre o corredor e os quartos.
Cantarola.
Se sente embebido pelos estragos.
E mais uma vez olha pro tempo e diz:
Agora ajude-a a limpar tudo isso.


Tumblr da Moça sábia: http://dvoador.tumblr.com/

sábado, 14 de setembro de 2013

Jogando alguns fora

Um tanto atrapalhada com os ponteiros, submersa em meu universo particular, permaneço em movimento. Enfrentando todos os movimentos espasmódicos e delirantes. A mudança vai operando-se, paulatinamente, e, súbito, metamorfose. Não me reconheço.
Período estranho. Móveis fora do lugar. Pensamentos vertiginosos. Muita introspecção. Pouca ação. Poeira pelos cantos.
"Quero mudar" "Preciso mudar" "Quero crescer". Desespero-me ao reconhecer os reiterados e indigestos erros. Aspiro tornar-me o melhor que eu possa ser. Quero realmente fazer a diferença. Atribuir um sentido bonito para a minha vida. Escapar do meu egoísmo e das minhas idealizações. "Quero mudar". Estagnar acabaria por me sufocar, por isso, continuo em movimento. Observo, um tanto atrapalhada, os novíssimos velhos fatos.
Por enquanto, vou mexendo neste desordenado lugar. Separando alguns para serem descartados. Alguns: pessoas, atitudes, memórias, decepções, objetos, ideais, e por aí vai. Desocupando espaços para serem preenchidos pelo novo. Desocupando espaços para poder voltar, novamente, a sorrir. Desocupando espaços para atingir, novamente, a leveza de ser. Quero me sentir, novamente, encantada por uma nova invenção. Voltar a ter, novamente, coragem para perseguir meus singelos sonhos. De viajar pelos quatro cantos. Novamente. Porém, de forma diferente. Desocupando, apenas. Evitando o trágico. Desde sempre tive uma dificuldade em aceitar o findar dos ciclos. Estou farta de tentar compreender o não-compreensível.
Estou farta da novidade monótona e vazia.

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Ausência tua




Eu seria hipócrita ao dizer que não sinto a tua falta.
E quem disse que isso precisa ser dito?
A ausência tua faz-me pensar...

E sentir. Às vezes eu verbalizo.
Quando o sentir sufoca-me e a iminente falência
faz às palavras transbordarem de minha boca.
Brevemente, o meu estúpido coração é acalentado.
Depois passa.
E volta.
Talvez como uma versão vagarosa da oscilação do mar...
A verdade é que...
O dia fica bem mais feliz quando apareces.
Tudo ganha mais cor, brilho, sabor e graça.
E por vezes nem sei explicar,
o que não necessita de uma justificativa racional.
Apenas deve ser vivido.

Essa tua ausência faz-me ter medo de sentir.
Faz-me pensar. E hesitar.
Desligo o som e por lúcidos segundos
desvencilho-me dos devaneios.
Bebo água e engulo sentimentos.
Regurgito uns. Oculto outros.
E escondo-os em uma caixinha
obscura. Inacessível
e errante.

O relógio persiste. Incorruptível.
Os ponteiros não devem interromper a perpétua dança.
As engrenagens resolvem apressar-se
apenas
quando estás ao meu lado.
E não há mais ausência.
Há apenas o frescor da noite
junto ao teu inebriante perfume.
Embriago-me em tua presença.
Esqueço o que poderia e quereria falar.

Por instantes, nada mais preocupa-me.
Agarrada à tua cintura, o frescor do vento embala-me.
A felicidade invade-me e penso o quão bom é estar ao teu lado.
Tua presença embala meus devaneios.
Imprudente anseio à eternidade desse momento.

De repente retorno à lucidez.
Desisto de meus planos surreais.
Permaneço ao seu lado, em silêncio.
Mensuro ao máximo minha conduta
para não sufocar-te.
E Devoro-te.
Simultaneamente.
Interminável batalha de sentimentos antagônicos.

No dia seguinte
ponho-me à refletir.
O dia acontece.
E tu não aparece.


O teu silêncio faz-me desejar irracionalmente à tua presença.


Acabo optando pelo caminho da prudência.
Adapto-me. Calo-me.
Pacientemente espero.
"que a saudade desenhe tuas linhas perfeitas"
À noite chega.
Tic tac, tic tac
À aurora surge ao leste. É hora de acordar.
Manhã silenciosa.
Tarde silenciosa.
Silêncio e ausência.
Anseios.
Receios.
"E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te"


Texto escrito há cerca de um ano atrás. Foi um dos primeiros poemas que me atrevi a fazer. E por este e outros motivos ele é muito especial. Dedico-o a todos os românticos [e profissionais da desilusão]. Dedico-o também ao Mário Quintana, cujo texto "Presença" me inspirou na escrita desse singelo poema.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Fugazes fluxos de pensamento de uma tarde contente descontente



Desalento
Dor, súbito, volta
Angústia, súbito, desatina
Descontentamento, vem, vai
Volta

Como versou Camões:
"descontentamento descontente"
Cárcere mundano
busca infinita pelo transcendental
transcender

Fato é que este cômodo incômodo
sempre permaneceu
distante
Cinza e delirante
Antes ou depois
Agora

Fazemos, o quê? Que faremos?
Vamos etiquetando, separando
Atribuindo, relacionando
As chagas de nossa alma
Com as chagas mundanas

Ópio?
Ilusão?
Alento?
Verdade?
Verdade,
intangível senhora,
onde está?

Pois, assim, vamos navegando
desbravando
destrinchando
temíveis profundas negras águas

Pois, assim como
O descontentamento
vem e vai
O contentamento
vem e vai

Tudo vai
Nada volta
Só transforma
[minha, sua, nossa]
Loucura

Esta loucura
deve ser fruto
de nossa
indecifrável
condição humana
irremediável
condição
irremediável
loucura
Vem e vai


Figura: Fernando Vicente Vanitas http://fernandovicentevanitas.blogspot.com.br/

domingo, 8 de setembro de 2013

Triste mulher bela




Preste atenção
Triste mulher bela
Saia um pouco de sua lânguida introspecção
E perdoe a minha incompreensão

Nunca saberei o que se passa em sua taciturna mente
Reiteradamente mutilada pelos anos
Nunca saberei quais os anseios
Abafados no seu peito

Quais os seus urgentes sonhos?
Quantos planos o tempo transfigurou em pó?
Quantos projetos abandonados pela falta de resiliência?

Vem cá,
vem se alegrar
Observo
este desperdício de tempo
há quase duas décadas

Irei tentar te mostrar
o quão maravilhosa você é
e pode ser
Alegria vem de dentro
Beleza e contentamento, também

Irei tentar te mostrar
que a sua claustrofóbica realidade
está distorcida
Fuja, fuja, fuja!
Enquanto o seu peito teimosamente pulsar
ainda será tempo

Queria te libertar
do cárcere de sua própria mente
Porém, a sucessão de derrotas
Parece ter sugado a vitalidade
das falidas pretensões

Com lágrimas nos olhos, te direi
não tenho um antídoto
Para a sua prostração
Gosto-fel das vicissitudes
de sentir-se incapaz
de te salvar

Tenha certeza que o que te agride
me agride também
Talvez sejam apenas
formas diferentemente iguais de demonstrar
Pois, por fim, minha querida
Você já deve saber, ou presumir
que neste desleal jogo
não há culpados
Somos vítimas
do mesmo assassino

Os anos vão se passando
Erros, desesperanças, amarguras
Diferentemente iguais
Resta-me, então, por derradeiro
o legítimo espólio
infértil latifúndio
perpetuado por gerações
pequeníssima ou grandessíssima parcela
de sua infinita, crônica
irremediável
tristeza

Poeminha

"tira esse azedume do teu peito
deixa teu riso fazer poesia
arranta tua carranca
o sol dessa cidade
não combina com teu pesar." 

ghnarciso

sábado, 7 de setembro de 2013

Subterfúgio de uma sexta-feira à noite



Noite de sexta-feira. Depois de batalhar durante a semana, finalmente, teria um descanso. Saí depressa da repartição, claustrofóbica atmosfera. Excepcionalmente nas sextas, o trânsito não representava um martírio. Esperança ia chegando enquanto o sol ia preguiçosamente se pondo no horizonte. Até o cansaço evaporava.
Em casa me banhava, perfumava, enfeitava. Vestia-me de um personagem. Sorria, bailava, serenava. Febril, enfim, dirigi-me do meu aconchegante aposento a Universitária Praça. Gente jovem reunida. Alegria, Alegria. Noite bonita, pensei. Cabe a mim fazê-la bonita.
Encontrei bons amigos. Um pouquinho de carinho sempre acalanta o coração. Por momentos, os grandes problemas, compartilhados, ficavam pequeninos. Chico sabiamente dizia "Cada qual no seu canto, em cada canto uma dor". Juntos, esquecíamos das angústias. E fazíamos planos. Sentir-se bem. Carinho sincero não faz mal a ninguém.
Pequenas coisas como atravessar a turbulenta cidade para sentar em um banco da praça com excelente companhia. Pequenas e tão essenciais! Não precisava de cigarros, álcool, ou qualquer outro tipo de psico-perturbador. Nada disso, queria a sobriedade. Depois de semanas, pela primeira vez, rejeitei o inebriante cheiro da cevada. Lamento, minha cara, hoje, não! Sinto-me bem, isso basta.
E por lá ficamos. Depois sentamos na grama. Fizemos roda. Discutimos. Tecemos nossos planos de mudar o mundo. Tanto faz. Eramos nós, instante, apenas. Depois, deitei, rolei. Tristemente não havia estrelas no céu. Porém, eu me sentia bem. Então, envolta pela atmosfera aconchegante, imaginei que a escuridão era estrelada e que elas sorriam para mim - para nós - todos.
Súbito, lembrei-me de você. Reminiscência irresistível. A certeza de sua presença foi tão real que jurei ser capaz de tocá-lo. E, permaneci, constantemente, a te ver em sutis movimentos (coisas que acontecem quando se sente falta de alguém). Não ousei verbalizar. Minhas reminiscências. Minha introspecção. Assim, navegando por mundos distantes, tive um insight. Súbito, compreendi. Leve brisa acariciou e pôs os meus cabelos em movimento. A presença física estava desvinculada da presença espiritual. E, francamente, ainda estávamos conectados. Levaria você, sempre, comigo. Uma bela parte sua estava em mim. E, alguma parte minha, estava em ti. Talvez nunca mais te reencontrasse. Provavelmente. Melhor assim. Contudo, estaríamos, pelo menos ainda por um tempo, juntos. A magia daquele breve verão não iria se desvanecer de forma banal.
Claro, o tempo, senhor tempo, acabaria por serenar as reminiscências. Por enquanto, peito desatinava, de vez em quando. Só que, depois dessa noite, percebi: você estava ali. Fechei os olhos. Uma cálida lágrima furtiva escorreu até os meus lábios. Disfarcei. Fitei. Sorri


De lá o grupo se dispersou e restou um grupo menor. Flanamos mais um pouco pela cidade. Nem queria voltar para casa. Iria até o fim. Sem planos traçados. Sendo movidos por genuínos anseios. Por fim, reencontrei mais uma amiga. Dirigi-me a casa dela e decidi que por lá ficaria. Encantei-me novamente com a sua doçura e sinceridade. Novamente, senti-me bem. Novamente, vi o quanto aquilo fazia-me falta. Às vezes, por descuido, estupidez, seja lá o que for, precisamos nos distanciar, navegar, ter novas experiências, para, depois, voltar. Reencontrar. Valorizar. Encantar-se, Novamente.
Estava cansada, com as ideias um pouco bagunçadas, mas, sentia-me bem. Comentaram sobre as olheiras, o olhar tristonho, a aura levemente sombria. Coisa de momento. Sentia-me bem, agora.

Duplipensação



Fica sempre um pesar
a desatinar
Estampado no olhar
Você não tem vontade de voltar
Regredir? Desistir?
Tampouco tem vontade de ficar
Permanecer? Estagnar?

Porém, a despedida
é tão sofrida
Ando saudosa
Navegando entre
partir e ficar
Dois verbos duplipensantes
Querer
duplipensante
Fazer
duplipensante
Sentir
duplipensante

Confusão!
Não tenho mais pretensão
Simplesmente vou tecendo
rimas sem ambição

Navegando
em hediondos
suscetíveis
pensamentos
fugazes

Doces devaneios
Terríveis desvarios
Verdade é que
nunca gostei de sensatez
Prefiro a maluquez
Confusão!
Duplipensação.


quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Palavras

Não diga
As palavras são traiçoeiras
Podem soar verdadeiras
Depois
Chega tempestade
Leva os planos
míseros enganos
E as palavras, então
Soam dissonantes
Errantes
Oblíquas e
Dissimuladas
Mas, nem foi ilusão
É só uma nova estação
Naquele tempo
eram verdade
só não são mais
Por isso, preste atenção
Contenha-se
Não as utilize em vão
Martha Medeiros já disse
que silêncio é risco
e sapiência
Por isso
Não diga
Apenas sinta

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Poema de celular

Por fim
Peguei a tinta
Rabisquei o papel

Por fim
Transfigurei as ideias
em rima
Por fim
Restou o poema
Eternizando o nosso
irascível dilema

Paremos enquanto há tempo
enquanto nossa incongruência
é suave prosa
Evitemos a tragédia, amor
O mundo já está cheio
de solidão

Bolsos polpudos, almas vazias
Partidos sem sentido
Estamos fartos, amor
Estamos fartos de tudo

Deixe que a arte cure
cubra de açúcar
as chagas mundanas
Evitemos a tragédia
Celebremos a comédia

Paixão alucinante
Fim decepcionante
Tinha que ser assim
Fizemos assim
Deixemos o tempo
ir arrastando-se
Colorindo e curando
Sem sofrimento!
Alma de artista
é cheia de lamento

Artista é
Inconstante
Errante
Esquerdo
Inadequado
Busca
Eternamente
Intangível
Insaciável

Receios refletidos em ti
Pouco amor por mim
Não amando-me
Como poderia
um dia
verdadeiramente
amar-te?
Incongruência, amor
Sentimentos incongruentes

Como poderia cultivar
Esta terra infértil?
Primeiro deveria ter olhado para dentro
dosado os excessos
arrumado a desordem interior
Para depois
Receber o seu afeto
Incongruência, amor

Quis mudar seu mundo
Até que ele fizesse parte do meu
Muitas diligências
Breve permanência
Incongruências

Permanecerei, por longas insônias
Escrevendo e procurando respostas
Rabiscando o papel
Eternizo o momento
Dilemas
Sigamos em frente
Enfrente
As incongruências


Ana partia

Tivera uma tarde sonolenta. Doce melodia melancólica embalando o desenrolar dos ponteiros. Havia muito tempo que não passava uma tarde assim. Havia tempos, aliás, que não fazia aquelas velhas coisas que tanto adorava. Andava um tanto alheia de si mesma. No fundo, bem no fundo, tinha um pouco de saudades de estar só. Nesses momentos assim é que restabelecia a sua paz interior. Quando traçava os seus novos projetos, dava continuidade aos abandonados e abria mão das perspectivas falidas. Sim, preciso era fugir, por instantes, de todos os movimentos bruscos e irrefletidos. Distância era preciso. Nem por egoísmo. Nem por insanidade. Preciso era para desapegar de certas influências. Tentar novos olhares.
Pois toda a fase de deliciar o novo, era importante, imperiosa, decisiva. Porém, súbito, sem muita explicação, chegava uma hora que era preciso desacelerar. Refletir sobre os últimos frenéticos meses. Insólitas metamorfoses. Paulatinamente deixando de ser o que era. E transformando-se no que aspirava. Ou quereria ser.
Tragando o agora. Fazendo planos a curtíssimo prazo. Havia conhecido novos lugares. Tinha aprendido a conviver - aceitar -o diferente. Adotado novos pontos de vista. Quebrando  barreiras, preconceitos e arrogância. Foi-se abrindo para o mundo, lutando contra a sua genuína introspecção. Viver, preciso era. Devaneios, ilusões, livros, discos e filmes não mais saciavam a sua infinda sede de novidade. Infinda sede de vida.
Até que cansou. Correu e fez viagem de volta. Largou todos os castelos de areia sedimentados. Partiu o coração de alguns. Mas, pior seria se prender aquelas pesadas expectativas que a sufocavam por todos os lugares que caminhava. Ou decepcionaria eles ou decepcionaria a si mesma. Não haviam boas opções. Ana tinha medo. De se entregar, de se prender, de amar. Melhor era voltar enquanto havia tempo. Melhor viver em seu claustrofóbico mundo interior do que entregar sua alma em qualquer alienação barata. Desapego, para ela, era liberdade.
Fez, então, o que sempre fizera. Estava sozinha, mas, estava bem. Escondeu-se em um abrigo e meditou. Restabeleceu suas proteções - muros - impenetráveis fortalezas. Pois, ninguém, além dela mesma, havia penetrado intimamente em sua escuridão interior. Assim deveria continuar a ser.
Cansei do mundo,  por enquanto, pensou, enquanto a irresistível luz da manhã invadia o seu quarto pela fresta da janela. Seu corpo estava dolorido. Preguiçosamente se mexeu por alguns minutos no colchão confortável. Minutos depois levantou. Se arrumou e saiu. Sozinha. Como sempre fora. Como escolhera ser.

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Despretensão




- As melhores coisas vem com o tempo - disse Aline com um sorriso sapeca. Deixa de afobação. Vamos tomar um café e comer um pão, Ju.
Só concordei. Costumava desatinar a falar - falar - falar - sem muita reflexão. Porém, hoje, sei lá, estava a fim de apenas escutar as suas palavras. Eram certeiras, doces, acalentadoras.
Fomos à cantina e compramos o de sempre. Pátio cheio. Mil rostos anônimos, melancolicamente, fitavam-nos.
Sentamos no chão. Falamos - falamos - falamos. E, juntas, fomos, tecendo soluções para as nossas íntimas questões. Demos risada. Aline era irritantemente positiva. Além disso, quando o assunto era irresistivelmente trágico: ironizava e fazia piada.
Céu claro. Atmosfera leve. Delicioso frescor matinal. Mente sóbria.
Muita conversação depois, Aline, disse, com resolução:
- Sabe, há tempos, venho me inspirando em você. Ju, você é um grande exemplo pra mim.
Fiquei surpresa, claro. Calei-me na hora. Infindos pensamentos em um fugaz milésimo de segundo. Viagem após, percebi que nutria o mesmo sentimento. Também me inspirava em Aline.
Por qual motivo eu gostava dela? Não sei. Empatia ou simpatia. Só sei que apreciava a companhia dela. Sentia-me bem. Não pelos seus bens ou bagagem intelectual. Gostava dela - simplesmente - pela beleza do seu ser. Singelo
É, percebi, também: as melhores e mais importantes coisas, são assim, singelas. Felizmente, não precisam de autoafirmação, discursos elaborados, empáfia, persuasão, Não! Mostram-se. Irradiam. Escondem-se. Contudo, nunca deixam de ser. Reaparecem em momentos de distração. Sem pretensão.

Viajando


domingo, 1 de setembro de 2013

Domingo

Por fim, o fim era bem parecido. Circunstâncias peculiares a parte, no fim só restava: silêncio, desprezo e cinismo. O recomeço: certeiro. A única saída. Não parecia muito perspicaz ficar remoendo amarguras. Tanta vida para ser vivida. Tanta vida lá fora. Fora do seu pequenino infinito mundo particular. Egoísmo seria pensar que a sua dor era a maior do mundo. Egoísmo fazer tanto drama desnecessário. Tolice!
Ela já estava acostumada (não necessariamente resignada) a recomeçar. A tombar. Cair. Espatifar no chão. Recolher os cacos. Recompor-ser. Levantar. Caminhar. Tropeçar. Cair. Ele, também.
Por fim, a vida era com os que ficavam. Pois, por fim, ele ainda estava lá. A cena se repetia. Os lamentos, também. Novamente, em um domingo. Os mesmos inócuos conselhos. O vinho habitual. Os saudosos poemas. Velhos sonhos improváveis. O mesmo samba. No cair da tarde, um belíssimo pôr-do-sol acompanhava a desilusão dos dois. Lágrimas confundiam-se com o hálito alcoolizado.
"Olha, vamos tentar ver a parte boa. Mesmo que inexistente. Deixar os fantasmas tomarem conta de tudo só vai tornar desnecessariamente prolongar a dor. Insuportável. Veja bem, ao deixar algo pra trás, ou desistir de um falido projeto, outras mil possibilidades surgem. Prender-se no equívoco é bobagem. Deixemos disso, Pequeno"
E, então, desatinavam a criar um bocado de perspectivas. Novíssimas. "Sonhar faz mal não, Pequena" Sorria largamente e a fitava com ternura. Por fim, ironizavam a falta de sorte que tinham pra tudo. Riam. Tiravam coelhos da cartola
"Tristeza não tem fim. Felicidade, sim" disse Tom Zé. Já Chico disse que "se todo mundo sambasse, seria tão fácil viver".
E, por fim, ébrios, sambavam. Envoltos pelo ritmo contagiante, requebravam e iam curando as suas feridas. Pulavam. Faziam festa. Voltavam a ser crianças. A felicidade, súbito, estava de volta. Singela alegria.
Por fim ficavam ofegantes. Alegria, momentaneamente, voltou! Coração serenava. Mas, a batida, a contagiante dança. Permanecia. Incessante.

domingo, 25 de agosto de 2013

Compilação de palavras. Compilação de percepções. Compilação de ideias.

Pequeníssimos assassínios diários

Faz parte do procedimento padrão
Não há como negar
Voltar
Escapar
Morre-se em pequenas doses

Pequeníssimas chagas
Pequeníssimos assassinatos
Desejos ignorados
Gritos abafados
Projetos abandonados
Paixões mal-resolvidas
Hábitos deletérios
Obstáculos imaginários
Chagas estancadas
Medos intransponíveis

Acorrentados
Cárcere mental
Cárcere mundano
Impossibilidades infames
Falácias convincentes
Íntegras máscaras
Mentira! Mentira!
Realidade distorcida
Atente-se
Tudo parece um mar morto
medos submersos
Sonhos intoxicados por
Negras águas de (des)ilusão

Enferrujados sorrisos
Cavernosos corpos
Sóbrios semblantes melancólicos
Perdendo o rubor sanguíneo
Entregando a sua juventude
de forma voluntária
Perdendo a sua luz
Ignorando o caos ao seu redor
Enamorados por uma frivolidade qualquer

"Parece cocaína!
Mas é só tristeza"

Trocando o feeling
Por uma estúpida mercadoria
Trocando o pensar
Por ideias pré-fabricadas
mecanizadas
enlatadas
Esquecendo a beleza da virtude
Cultivando a insana vaidade

Insano homem egoísta
Contempla agora o vazio
Tenta
desesperadamente
Preencher
O abismo que criou


sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Letargia



Onze da noite. Aflição. Psicológica prisão. O dia arrastou-se interminável. Os ponteiros engatinhavam. Jazia no colchão. Entorpecida pelos meus deletérios pensamentos. Meu corpo estava dolorido. Pescoço,  ombros, juntas. Tensões acumuladas.
Viajando pela imensidão, um questionamento inevitável pairava pela densa atmosfera: Porque somos assim mesmo? Tudo é tão simples. Ou. Tudo poderia fazer-se simples. Nós é que complicamos. Cada um com sua maluquez. Animal sentimental. Animal inconstante. Como diz Renato Russo: se apegando facilmente ao que desperta o seu desejo. Daí, o fim, é conhecido: você se fode. Sim, se fode. O eu-lírico melancólico está colérico. Eu-lírico lobisomem. Eu-lírico dramático. O eu-lírico dispensa, agora, eufemismos poéticos. O eu-lírico não quer florir qualquer tenebroso cenário. Mesmo este cenário tendo sido criado.
E bem, eu-lírico imbecil, tudo está assim por sua culpa. Sua condenável mania de ser assim. Por causa dessa ingenuidade. Não-dosagem. Devaneio ambulante! Inconstante! Pague agora o alto preço de ser...assim. Caos fabricado por sua mente louca. Saboreie o gosto-fel desse gênio estranho. Reeduque-se, cuide-se, modifique-se, ou, ou, ou. Continuará assim: trupicando pela vida. Adquirindo mais uns hematomas.
Fato é que as ideias me angustiavam e precisava de um escape. Precisava materializá-las de alguma forma. Até para que pudesse tentar entendê-las. Ou. Talvez. Para que constatasse a minha insensatez e descompreendesse tudo. De vez. Desmanchasse, no ar, todos os conceitos. O conceito é não ter conceitos.
Pus-me, então, a deixar que os dedos transformassem os fluxos de pensamento em letras. Mil palavras. Desconexas e lúcidas. No meio de toda solidão, só existia uma pessoa que poderia me compreender. Um único ser que não faria aquele detestável monólogo das quase meia-noite parecer insólito. A única a qual não viria com julgamentos ou sanções. A única que até no silêncio me mostraria as respostas que eu já sei, e teimo, em esconder. A única que conseguia me enxergar, verdadeiramente, como sou. E, principalmente, que conseguia me aceitar.
Estamos conectadas. Nossa amizade nasceu sem motivos. Amiga-irmã. Diferentes, muito. E por um lado, parecidas. Lealdade. Companheirismo. Moça sabida. Moça que sutilmente levanta as bochechas quando sorri. E que contempla com os seus sagazes olhos todo o espetáculo da vida. Alerta menina quando esta insiste em caducar, e cometer, os mesmos erros. Um dia ou um mês sem nos falar nunca altera nada. Pois, sempre, você está presente. E, naquela noite letárgica, a consciência desse sentimento tão bonito me acalmou. Como o arrebatador cd. E como aquela cartinha perto do findar de um trágico ciclo. Ou dos escritos de aniversário.
Não, não sei, acho que não direi mais nada. Vou pescando umas verdades no meio do nada. Desconstrução. Construção. Vejo que as palavras são traiçoeiras. Atitudes, na maioria das vezes, valem mais. Que nenhum afeto nasce por contrato. Que as pessoas são pássaros. Que a felicidade é clandestina. Efêmera. Que devemos aproveitar ao máximo os momentos contentes. Pois, súbito, eles irão sublimar. E nada pode ser feito a respeito. Por fim restarão as lembranças. Por fim você terá que seguir em frente. Todos os dias. Renascer. Crescer. E, de repente, uma resposta aparece. Aquela que você sempre soube. Só o amor pode nos salvar. Como Neruda disse em qualquer lugar "Se nada nos salva da morte, pelo menos que o amor nos salve da vida". Continuarei então, gauche, como disse Drummond. Continuarei, então, lutando pelas "causas perdidas". Continuarei inadequada. Continuarei, pois, amando. Continuarei buscando o intangível. E compartilhando. Porque a vida é dura demais sem ter pessoas, como você, por perto. Como disse Supertramp no inspirador "Na natureza selvagem": A felicidade só é real quando compartilhada. E, finalizando, como disse Vinícius: "É impossível ser feliz sozinho".
Por isso, insisto, sobrevivo. Meu coração continua vibrando. Para vocês, por vocês, meus queridos. Ontem essa verdade apareceu. Letárgica noite. Belíssimo luar. "Eu te amo". Que coisa bela. Confesso que quase não utilizo essa combinação. Anda tão vulgar, tão clichê, tão desgastado. Se te amo, não preciso ficar autoafirmando isso a todo tempo, não! Amo-te porque amo-te. Basta, apenas, demonstrar. Basta, apenas, sentir. Como súbito senti a beleza do amor. Sua imaterial certeza. Tudo. Nada. Em uma insconstante e solitária noite.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Ponho-me, pois, a recordar

Acho que ando um tanto fatigado. Suscetível e pirado. Semana tensa. Terrível sequência de vicissitudes. Meu maxilar parece paralisado. Nos últimos dias, devo ter apenas o mexido para mecanicamente fazer aquelas refeições sem sabor. Para fumar uns cigarros. Para responder ao habitual "Bom dia" do vizinho. E para soltar uns sofríveis palavrões depois de ter batido o dedo mindinho no pé da mesa.
Os dias na repartição continuam sendo um saco. Demasiadamente rotineiro. Demasiadamente monótono. Oito horas de aflição. Sôfrega prisão. Seis horas da tarde: alforria! Não por muito tempo: ponho-me a deliciar duas horas de congestionamento. Quando chego em casa. Fito e deito. Respiro, aliviado. A cadelinha faz festa. A primeira (e única) alegria desta besta vida de quarentão solteiro. Arranco os sapatos. Fico de meia. Tiro o cinto. Camisa. Aos poucos vou me livrando das correntes.
Abro a geladeira. Sempre vazia. Normal. Porém, sempre, com cervejas. Abro uma bem geladinha: Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaah. Não contive o suspiro contente.
No entanto, meu peito, desatinava descontente. Faltava algo. Aquele cômodo estava tão sombrio, frio e vazio. Estava, sim, pois antes já esteve diferente. Era colorido, perfumado e confortável. Quando você estava aqui. Quando a sua presença o enchia de vivacidade. Quando tudo podia estar absolutamente arruinado, mas, você estava aí. Para chorar ao meu lado. Reclamar junto. Ou fazer planos mirabolantes. Ou para aparecer com aquela insuportável - e encantadora - história de achar um ponto positivo em tudo.
Agora tudo é tão triste, meu bem. Pensei, contemplando a tediosa televisão. Cada canto daquela casa transpirava você. Quase dez anos. Intensos anos. Digo com a convicção que o político demagogo faz promessas ao povo, que conhecia cada poro, cada pinta, cada curva do seu lindo corpo. Suas mil faces. As nuances de personalidade. Os olhos, os olhares, dentes, ossos, sorrisos. Tudo, tudo, tudo.
Mulher geniosa. Adorava suas inconstâncias sentimentais. Por vezes isso me assustava. Logo passava. A verdade é que o mau humor ficava dissonante da sua face angelical. E dos seus olhos vivazes. Súbito, voltava a fazer piadas - muitas vezes de um obscuro e satírico humor, mas, ainda sim, piadas - e sorria largamente. Por fim, acabava ficando mais apaixonado. Como dizia o Chico Buarque, aquele fanfarrão, o único cujo deveria realmente me preocupar, pois, vivia roubando a atenção da minha amada. Que lindamente desatinava a cantarolar: "Depois brinca comigo, ri do meu umbigo, e me crava os dentes, ai"
Lembro-me bem que você achava brega quando eu trazia flores: " Fernando, Flores, não! Sem modos patriarcais. Se quiser flores, deixe que eu mesma irei à floricultura. Traga livros. Traga  pães. Traga doces. Traga um bom vinho chileno. Traga um poema. Traga um arrebatador cd. Ou. Traga você. Apenas. É o suficiente para me fazer feliz"
Constantemente divertia-se com as minhas casmurrices. Com as crises de introspecção - sem aparente razão - e ria da minha "incurável lerdeza". Adorava discordar das minhas sisudas opiniões. Dos meus excêntricos gostos. Tudo com humor. Tudo com ternura. E com um milhão de argumentos.
Por vezes, sem argumentos. Só silêncio. Lembro-me de um dia. Pouco antes da sua partida. Você estava um pouco deprimida. Sua voz estava lenta. Os seus olhos, distantes e melancólicos. Me abraçou com resolução. Apertou os meus braços. E fitou-me por infinitos instantes. Desligamos as luzes da sala e deitamos no chão.
Ninguém ousou dizer nada. Permanecemos assim. Abraçados. Corpos unidos. Calores e energias, pouco a pouco, se unificando. Tragando a presença um do outro. O único som era o da sua lenta respiração. Íamos nos perdendo na infinda escuridão. Embriagados pela indescritível paz que sentíamos.
Entretanto, meu bem, você estava enferma. De repente, começou a soluçar. Lágrimas quentes escorriam dos seus olhos. Aquela torrente, lentamente, banhava a minha camisa. Fiquei surpreso, mulher geniosa, forte, raramente chorava. De repente, pois, sua fragilidade, que tanto teimava em esconder, ficava desvelada. Não soube muito o que fazer na hora, então, apenas acariciei os seus cabelos. E permanecemos assim. Nem consigo mensurar o lapso de tempo. Sei que, por fim, você me beijou suavemente. Intensamente. Daqueles beijos em que se beija a alma. E disse: "Não há pessoa, neste mundo, que eu tenha amado mais. E que tenha me feito tão feliz. E que eu me sinta tão à vontade. Não se esqueça disso. E, observe: Juntos, conseguimos preencher até o silêncio."
Sim, Maria Alice, nosso tempo juntos se esgotava tão rapidamente quanto aqueles contadores bomba-relógio de filmes de ação. E eu, insensível, obtuso, não consegui perceber. E, francamente, vejo, hoje, que já naquele tempo, não havia muito a ser feito. Aliás, nada poderia ser feito. Porque, assim como, aparentemente, fomos "predestinados" a nos conhecer e a nos amar, também, fomos "predestinados" a nos separar um dia.
Agora, são duas da manhã. Um homem triste, solitário e com um humor taciturno navega pela escuridão. Bravamente sobrevivo. Largado em uma cadeira. Totalmente fora dos  burros estereótipos midiáticos: gostosão atlético, imponente executivo, carismático artista. Não! Na realidade eu sou um mau humorado, fracassado e inconsolado. Sentado em frente à uma máquina de datilografar. Barba por fazer, hálito capaz de causar náuseas em uma virgem alma: álcool, nicotina, comida gordurosa, tudo, tudo, que desesperadamente possa preencher o vazio. Tudo, tudo, tudo que possa encurtar esse martírio. Tudo, tudo, tudo que vai me matando aos poucos. Estou datilografando. Ponho-me, pois, a recordar. O meu maior deleite. A derradeira atividade. O que me restou.
Então, os meus dedos vão, pacientemente, tecendo. Criando e recriando. Materializando. As lembranças. Suas. E nosso eterno.

O Menino e a Borboleta Encantada

                     

"Os números me dizem que já se passou muito tempo. Mas a memória ignora: é como se tivesse acontecido ontem. Assim é: o que a memória ama fica eterno. E eternidade não é o sem-fim. Eternidade é o tempo quando o longe fica perto. Riobaldo sabia dessas coisas. “Contar é muito dificultoso”, ele disse. “Não pelos anos que já se passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas de fazer balance, de remexerem dos lugares. A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos; uns com os outros acho que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo coisas de rasa importância. Assim é que eu acho, assim é que eu conto. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras de recente data. Toda saudade é uma espécie de velhice.”
 
Pois é assim que estou, na saudade, as horas antigas bem perto de mim... Uma menina de cinco anos chora, minha filha. Está com medo. Vou viajar para longe, ficar muito tempo ausente, ela não quer, pede que eu fique, mas não há nada que eu possa fazer. Aparece então uma estória, é sempre assim, elas surgem de repente, sem que eu as tenha pensado, vindo de algum lugar que eu desconheço... Pois ontem, de repente, passados muitos anos, ela se contou de novo não à menina, mas a mim, com um sorriso matreiro e materno. Talvez porque, dessa vez, seja eu que esteja chorando com medo da saudade. A estória é assim.
 
Era uma vez uma Menina que tinha como seu melhor amigo um pássaro encantado. Ele era encantado por duas razões. Primeiro, porque ele não vivia em gaiolas. Vivia solto. Vinha quando queria. Vinha porque amava. Segundo porque sempre que voltava suas penas tinham cores diferentes, as cores dos lugares por onde tinha voado. Certa vez voltou com penas imaculadamente brancas, ele contou estórias de montanhas cobertas de neve. Outra vez suas penas estavam vermelhas, e ele contou estórias de desertos incendiados pelo sol. Era grande a felicidade quando eles estavam juntos. Mas sempre chegava o momento quando o Pássaro dizia: “Tenho de partir”. A Menina chorava e implorava: “Por favor, não vá. Fico tão triste. Terei saudades”. “Eu também terei saudades”, dizia o Pássaro. “Eu também vou chorar. Mas vou lhe contar um segredo: eu só sou encantado por causa da saudade. É a tristeza da saudade que faz com que as minhas penas fiquem bonitas. Se eu não for não haverá saudade. E eu deixarei de ser o Pássaro Encantado. Você deixará de me amar.”
E partia. A Menina, sozinha, chorava. E foi numa noite de saudade que ela teve uma ideia: “ Se o Pássaro não puder partir, ele ficará. Se ele ficar, seremos felizes para sempre. E para ele não partir basta que eu o prenda numa gaiola.”
 
Assim aconteceu. A Menina comprou uma gaiola de prata, a mais linda. Quando o Pássaro voltou, eles se abraçaram, ele contou estórias e adormeceu. A Menina, aproveitando-se do seu sono, o engaiolou. Quando o Pássaro acordou ele deu um grito de dor.
“Ah! Menina... Que é isso que você fez? Quebrou-se o encanto. Minhas penas ficarão feias e eu me esquecerei das estórias. Sem a saudade o amor irá embora...”
A Menina não acreditou. Pensou que ele acabaria por se acostumar.
 
Mas não foi isso que aconteceu. Caíram as plumas e o penacho. Os vermelhos, os verdes e os azuis das penas transformaram-se num cinzento triste. E veio o silêncio: deixou de cantar. Também a menina se entristeceu. Não era aquele o Pássaro que ela amava. E de noite chorava, pensando naquilo que havia feito ao seu amigo...
Até que não mais aguentou. Abriu a porta de gaiola. “Pode ir, Pássaro”, ela disse. “Volte quando você quiser...”
“Obrigado, Menina”, disse o Pássaro. “Irei e voltarei quando ficar encantado de novo. E você sabe: ficarei encantado de novo quando a saudade voltar dentro de mim e dentro de você...”
 
 A estória termina assim: a Menina na espera, se preparando para a volta do Pássaro. Mas como ela não sabia de onde ele voltaria, todos os espaços ficaram encantados. Ele poderia vir de qualquer lugar. E todos os tempos ficaram encantados: a qualquer momento ele poderia voltar.              
Quando a saudade apertava o seu coraçãozinho, ela dizia: “Que bom! Meu Pássaro está ficando encantado de novo!” E assim, a cada noite ela ia para a cama triste de saudade, mas feliz com o pensamento: “Quem sabe ele voltará amanhã...” E sonhava com a alegria do reencontro.
 
O tempo passou. O Pássaro mudou seus hábitos. Passou a voar mais nas asas do pensamento do que dentro de aviões. Quando se viaja de avião a volta é uma coisa complicada, leva tempo. Quando se viaja no pensamento é diferente. Para se regressar basta um “Oi!”, e o viajante está de volta.
 
E a Menina mudou também. Menina, era ela que vivia engaiolada: não tinha permissão para voar. Mas mesmo que tivesse, não adiantaria: ela não tinha coragem para enfrentar a solidão: a solidão é amedrontadora. A Menina não podia voar porque não tinha asas no corpo. E não tinha asas na alma. As asas da alma chamam coragem. Coragem não é ausência do medo. É lançar-se, a despeito do medo.
 
O Pássaro, distraído, pensava na Menina sempre como uma criança sem asas. Não notou que algo estranho estava acontecendo: começaram a crescer asas nas suas costas. Não asas de pássaro. Ninguém é igual. Delicadas asas de borboleta. Crescidas as asas, finalmente chegou aquilo que mais cedo ou mais tarde teria de acontecer. A Menina chegou-se ao Pássaro e lhe disse: “Tenho de partir.”
 
O Pássaro teve vontade de dizer: “Por favor, não vá...” O Pássaro tinha medo da distância. A Menina estando perto ele cuidaria dela. Bastaria que ela ficasse triste para que ele se aproximasse. Queria poupar-lhe o perigo, a saudade, a solidão. Queria que ela estivesse segura. Mas ele sabia que segurança, mesmo, só dentro da gaiola. E dentro de gaiolas não existe a alegria. Borboletas vivem em casulos fechados só por algum tempo. De repente elas saem para a vida, para o voo, para o perigo, para a alegria.
 
O script da estória mudou. Tem de ser outra estória. O  Pássaro Encantado virou um menino de (poucos) cabelos brancos. Na sua mão está pousada uma Borboleta colorida. Ele a contempla, encantado. Mas sabe que esse momento a Borboleta pousada na sua mão, é efêmero. Ele olha e espera. A Borboleta vai voar. E ele diz, triste pela partida, e feliz pelo voo da Borboleta: “Voa! Terei saudades. Mas sei que são as saudades que nos tornam criaturas encantadas...”
 
Rubem Alves

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Claustro filoPoético

Encontrei respostas, por acaso, enquanto consultava os escritos de um amigo:

"Essa estória de estar sempre presente sufoca o ideal do eu poético, que precisa de tempos em tempos sair de cena, para depois voltar em grande estilo. Pois só assim se cria aquele certo anseio de se achar nos perdidos da vida. Desaparecer, espairecer e reaparecer, três verbos que tornam a vida humana menos medíocre".

http://claustrofilopoetico.blogspot.com.br/

Dançando

                       


Dançando.
Pés saltitantes
Destino errante
Sendo conduzida pela melodia inebriante.

Vagarosamente perdendo o controle.
Desvencilho-me do cárcere
Movendo
dedos, mãos, pernas, pés.
Rodopio
Doce vertigem.

Um. Dois. Três. Quatro
Um. Dois. Três. Quatro
Sutilmente
Movendo a cabeça
E o pescoço
Perdendo o controle
Submergindo em um mundo secreto
Em uma realidade paralela qualquer
Tentando alcançar
O insólito mundo subterrâneo

Deliciando o doce-amargo da ilusão
Sonhos
Antídoto contra a amargura do mundo
Dança
Ousadia
Escolha
Necessidade
De continuar

Movimentando-se
Céleres espasmos
Vertigem
Dor
Vazio
Indecisão
Medo
Gritos abafados
Anseios intangíveis
Distorção
Invenção
Horripilante realidade

Movimentando-se
Enfrentando o inesperado
Tentando estancar
As chagas latentes

Movendo-se em meio ao movimento
Em meio à confusão de luzes
Movendo-se em meio de cadáveres
De atitudes precipitadas,
Fugazes e errantes
Inexorável torrente

Dançando
embriagada por uma infinitude escarlate
Disritmia
Nunca será suficiente
Nunca atingiremos o âmago, o êxtase
Nunca encontraremos a resolução
Para todos os pequeníssimos-grandes litígios
Tudo que é abruptamente finalizado
Mal solucionado
dilacera
Irá nos dilacerar, pois

Dançando
Procurando ressuscitar
Perspectivas amorfas
Em meio aos passos incessantes
Procurando atribuir sentido
Ao que é desprovido de razão

Movimentando-se
Por causa do imperiosa necessidade
De sobreviver
De querer viver!

Dançando e tentando desesperadamente fabricar
Qualquer dose de destemidez e resolução
Desperdiçando o meu tempo
Com frívolas distrações
Reinventando-me
Movimentando
Escapando
fatídicos
fatos.




Gostando de Vinícius

Os próximos já sabem que, há uns bons anos, gosto de Vinícius.
Foi a primeira obra poética que conscientemente me apaixonei.
Antes de Vinícius, achava os poemas, e os poetas, chatos.
Li, reli, treli a sua  Antologia.
Quando percebi, os versos de Vinícius estavam em mim, e apareciam, inevitavelmente, em minha escrita.
Como o Rubem Alves versou sobre o amor "não obedece a lógica das trocas comerciais, nada te devo, nada me deves, como a rosa que floresce porque floresce, eu te amo porque te amo", ou algo do tipo. Não importa.
Meu apreço pelo Vinícius não tem explicação "racional". É gostar. Simplesmente. Tentar explicar seria inútil. Determinadas coisas não precisam de explicação. Mania estúpida de querer sistematizar tudo. Quanto positivismo! Posso exemplificar tal ideia, relatando o ocorrido, ontem, durante a aula de Teoria Geral do Estado: a professora pedia que optássemos por uma das teorias contratualistas e justificássemos a nossa escolha. Gosto mais da do Rousseau. Bom selvagem. Sociedade perversa que os corrompe. Contudo. Não sei explicar a minha preferência. Questão pessoal. Imaterial. Abstrata.
E se. E se. Não gostasse de nenhuma delas? E se gostasse um pouco de cada uma?
E-n-f-i-m
O poema do dia, então, é:

Soneto da Separação

De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto
De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama
De repente não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente
Fez-se do amigo próximo, distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Impressões

Abra os seus olhos. Preciso. Já. Abra os seus olhos. Fuja. Todas. Ideias infrutíferas. Sentimentos amorfos. Indigesta mentira. Sorrisos enferrujados. Abraços gélidos. Laços quebrantáveis. Abra os seus olhos. Olhe. Verdadeiramente. Para os meus. Não receie. Sinta. Ouse descobrir. O que eles. Desesperadamente. Tentam lhe dizer. Não desista. Suas lutas. Seus sonhos. Secretos anseios.Tente. Novamente. Tente novamente. Formas diferentes. Faça. Dispa-se. Cólera. Desapegue. Frivolidades. Caminhe. Descalço. Vá. Pela esquerda.
Metrópole melancólica. Fim de expediente. Desesperança. Desamor. Estresse. Gritos abafados. Dores reprimidas. Desejos imperiosos. Horários corridos. Corrida. Corrida! Para sobreviver. Comer. Para não ter um tostão do meio ao fim do mês. Pegar a condução lotada. Filas. Filas. Espera interminável. Correndo. Vertigem. Correndo. Vamos. Perdendo. Vida.
Continuo lutando. Porém, confesso. Vou ficando velho. Vou ficando cansado. Os ímpetos juvenis esgotam-se. Sublimam-se. Vagarosamente. No meio. Sombria atmosfera. Tudo. Tudo. Frio. Estranho. Mentiroso. Meu corpo dói. Sinto frio.  Solidão. Por isso, meio enclausurado, procuro por você. Meu tempo é breve. A tempestade se aproxima. Irresistível. E, dessa forma, não irei desperdiçar, nenhum momento. Sem você. Então. Venha aqui. Pare de fugir. Esqueça. Mágoas. Postergações. Perdoe o que puder. Esqueça o que não tiver. Abra os seus olhos. Volte. Devolva-me. Liberte-me. Ou. Deixe-me. Perder. De vez. Por fim.

domingo, 18 de agosto de 2013

De repente

Aos poucos, a muralha centenária, pouco a pouco, desaba
De repete, convicções prolixamente sustentadas, desaparecem
Novíssimos hábitos, gostos e novidades, compõem a atmosfera
Quatro meses, Quatro anos
A todo momento, novidades!
Metamorfose constante
Novidades
As chaves que nos libertam desta prisão

De repente a vida é lá fora
De repente a solidão - não mais - me devora
Os devaneios, abstrações, páginas de livros, apenas
não conseguem conter os infinitos anseios que desatinam em meu peito
O espiritual dá lugar ao tato
Ao efêmero
Vejo que cresci. Vejo que o tempo urge
Vejo que perdi muito tempo com a minha indecisão
Pau-
-la-
-ti-
-na-
-mente-
perco o medo
Novidades! Novidades!
A força motriz

De repente o tempo é agora.
De repente a melancolia urbana desvanece
De repente a dor do mundo, por infinitos instantes, desaparece
O insólito trânsito cessa
O infeliz executivo veste pijama
O drogado dá o último trago
Os amantes desfrutam do derradeiro orgasmo
O padre. O deputado. O estúpido fidalgo
Opressor. Oprimido. Alienado
Invisível. Ignorante. Herege
O Velho. A grávida. A criança
Todos. Todos. Todos

De repente
Param
Tragam o agora
De repente, estão libertos
Observam
Contemplam o infinito azul celestial
E, então, desvinculam-se
de toda esta deletéria materialidade bestial

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Bom dia

Dia bonito!
Estou contemplando as nuvens
Enquanto o busão
avança pela metrópole furiosa

Bom dia,
Olha as nuvens que rodeiam o sol
A força do sol encontrando brechas para tentar se impor

Mas as nuvens resistem. 
A atmosfera os oprime
E, então, diante deste litígio
luz e nuvens se compõem
Formando uma bela paisagem impressionista
Acariciando as retinas
Acalentando o coração

"Estamos compondo um poema"
"Você que está fazendo"
"Nós"

As nuvens em cor degradê
o branco amarelado quente ao Sol
O cinza negro frio ao homem
Logo elas fraquejam
Os finos fechos de luz
são os gritos agoniantes
Do sol que vai se libertando da prisão estrelar
Quer imperar,
soberano solar

É a batalha do crepúsculo
Aquecendo a alma de quem o vê...

- Compilação de mensagens de texto trocadas em uma doce manhã - Afinal, não é preciso estabelecer paradigmas em relação a forma de composição. Poema tem que ser assim: espontâneo.

domingo, 11 de agosto de 2013

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Escape



Ei, minha pequena, venha cá. Sente-se ao meu lado e ouça o que eu tenho para dizer. Preciso te ensinar a se amar. Largue estas pílulas. Largue destas pessoas. E destas ideias. Que só te deixam mal. Fique perto de quem te faz bem. Derrube a muralha que te sufoca. Limpe as lágrimas. Ignore estes infames conselhos pré-fabricados. Espante a tristeza. Abra a janela e deixe a alegria entrar. Levante deste sofá. Lave o rosto. Tire da gaveta empoeirada os projetos abandonados. Fuja. Coragem. Para ser quem tu és. Para enfrentar as agruras. Para ter a ousadia de assumir a tua dor. Grite. Grite bem alto. Tão alto quanto a dor. Corra. O mais rápido que puder. Até que o seu fôlego acabe. Até que a sua imensurável. Dor. Desapareça. Diga: Nunca mais. Reaja, por favor. Olhe. Observe. Olhe para as coisas de forma diferente. Adote uma nova perspectiva. Lute por uma causa. Acredite na beleza do ser. Acredite na doçura.  Acredite, Acredite. Volte a acreditar. Mil tentativas erradas. Pois, tente, mais uma vez. E, novamente. E, sempre. Só assim poderás voltar. A verdadeiramente. Viver

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Abrigo

E, agora, você pode me ouvir?
verdadeiramente, pode me ouvir?
Nesta escuridão infinda
deste quarto solitário
Letárgica prisão
Você consegue me sentir?
Sem receios
Apenas sinta
a minha presença urgente
Ouça a batida
Trague o som
Perceba
o grito desesperado contido em meu silêncio
Entre sem bater
Pegue nas minhas mãos
Envolva meu corpo junto ao teu
E diga, sem hesitar
Todo aquele discurso implícito que já sabemos
E em um suave encontro de lábios cálidos
Me mostre que não vale a pena
continuar evitando
o amor