Flanei pela madrugada e cantei a melodia do vento
Soltei os cabelos e ri meu riso libertadoramente
abracei fortemente aqueles que eu tinha vontade
Disse não-ditos, disse o que pensava, assumi
que não sabia e, por hora, não saberia responder
Senti a deliciosa leveza do nem saber, nem ser, nem querer
Aproveitei a beleza de mais uma felicidade fugaz.
Depois veio o surpreendente,
Diálogos e confissões tecidas pela madrugada
De repente, percebo:
alguém notou a sua confusão
alguém reparou os passos distraídos
alguém percebeu a dor por trás do sorriso
a dor por trás do olhar de esgueira
a dor do tanto sentir
medo da solidão
medo do amor
medo da dor
medo de jogar tudo para o alto
medo de assumir os erros
medo de tentar novamente
medo medo medo medo medo
medo de sentir medo
Alguém reparou enquanto caminhava distraída.
Embalada em seus braços, tapei os olhos com as mãos, me contorci e sussurrei:
- Não vê? Sou egoísta. Egoísta. Egoísta. Infinitamente egoísta.
Percebeu quantos "eu" carregados em meus lamentos?
Segui o terço e ouvi suas palavras.
Era bastante incomum a forma como conseguia enxergar meus defeitos
E sutilmente descrevê-los um a um.
Porém, não fiquei colérica ou melancólica
Constatava a fatalidade de cada observação.
Fazia um breve comentário e me ajeitava em seu colo.
E assim passamos longas horas
Embrigada de sono, experimentei a lucidez de contemplar depois de tanto tempo a tragicidade de todas aquelas palavras.
Às vezes eu sorria e ele estranhou.
Seguiu o terço e eu o ouvia.
O abraço ficava vez mais acalentador
Cada vez sentia a sua respiração quente mais próxima ao meu rosto
Pouco antes da aurora, ele desligou a luz e cansou-se de tanto falar tanto.
Ficamos em silêncio
Entreguei-me ao momento e concomitantemente estranhei o fato de estar ali.
A onda voluptuosa chegou e fui deixando-me levar pelos sentidos lentamente.
Estranho se sentir em paz ao lado de quem, sem permissão, desnudou seu ser.
Certo tempo passado, quando o sol já ardia lá fora, me despedi.
Subi tonta e resoluta a ladeira da Avenida movimentada.
Remexi um tanto confusa na bolsa e me lembrei que amanhã seria Ano Novo.
Ano Novo e velhos problemas
velhos medos
velhas soluções
velhas condutas
"Ah, que porcaria. Pra quê beber champanhe e me vestir de branco?
Se dia primeiro farei tudo exatamente igual? Danem-se as listas de desejos (que não desejo) tediosamente iguais:
- Próximo ano vou malhar, estudar suficientemente, arrumarei um namorado, farei plástica nos seios, aprenderei alemão, etc, etc.
Dane-se!
Desejo uma feliz conduta nova. Um velhíssimo novo modo de contemplar a mesma paisagem cinza cotidiana. Força para continuar enfrentando a histeria e os fatos lúgubres. Coragem para refazer-se quantas vezes forem necessárias. Ousar voltar atrás e lutar contra as misérias. Deixar o egoísmo de lado e passar a perceber a vastidão do mundo que existe lá fora. E quantos mundos além existem e coexistem com o seu. Uns malucos queridos disseram que o tudo e o nada são iguais. Pois bem, desejo tudo e desejo nada.